Hemofilia no Brasil: inovação bate à porta, mas e a política de acesso?
- Vox & Gov
- 11 de jun.
- 7 min de leitura
Novas terapias trazem esperança, mas política nacional de cuidado são desafios cruciais para pacientes

Foto de Aman Chaturvedi na Unsplash
O Brasil acompanha avanços significativos no tratamento da hemofilia[1], com o desenvolvimento de tecnologias biomédicas que prometem revolucionar a qualidade de vida dos pacientes. No entanto, a incorporação dessas inovações no sistema público de saúde e a construção de uma política de atenção integral robusta ainda encontram obstáculos. Segundo dados do Ministério da Saúde, existem 12.983 pacientes com hemofilia A e B cadastrados no Brasil, e um total de 24.228 pessoas com coagulopatias hereditárias no país, configurando a quarta maior população mundial com essas condições.
Para aprofundar a discussão sobre os avanços terapêuticos, o panorama político-regulatório e as ações prioritárias para a hemofilia no Brasil, conversei com Mariana Battazza, Presidente da Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia (ABRAPHEM).
A ABRAPHEM tem atuado na defesa dos direitos dos pacientes e na proposição de melhorias no sistema de atenção, conferindo uma visão estratégica sobre os obstáculos e as oportunidades para esta comunidade no Brasil, especialmente no que se refere à incorporação de novas tecnologias e à formulação de políticas públicas efetivas.
Avanços no tratamento e o impacto na vida dos pacientes
As inovações mais recentes no tratamento da hemofilia estão focadas em produtos que oferecem maior eficácia e menor sobrecarga para o paciente e sua família, favorecendo uma melhor adesão e prevenindo hemorragias com mais eficiência. Essas tecnologias, já disponíveis no mercado internacional, representam um salto qualitativo na forma como a hemofilia é gerenciada, abrindo caminhos para um futuro com menos limitações e mais qualidade de vida.
Contudo, a incorporação dessas novas tecnologias pelo SUS ainda enfrenta entraves. Mariana Battazza ressalta a expectativa por processos mais céleres e abrangentes. Ao abordar a questão, ela destaca: "Apesar do anticorpo monoclonal Emicizumabe, ter sido incorporado pelo SUS para os pacientes com hemofilia A com inibidores, no final de 2023, ele só começou a ser disponibilizado aos pacientes em dezembro de 2024. Nossa expectativa é que essas incorporações aconteçam de forma mais célere e que possam abranger um número maior de pacientes".
Desafios regulatórios e barreiras ao acesso
A trajetória para a incorporação de novas terapias no Brasil ainda é complexa e burocrática. Entre 2017 e 2023, cinco produtos, de quatro empresas farmacêuticas, para o tratamento da hemofilia tiveram sua incorporação negada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), dentre outros problemas no processo de registro, aponta: "Além disso, 2 produtos incorporados em 2021 nunca foram disponibilizados aos pacientes. Segundo informações da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde (CGSH- MS), problemas burocráticos relacionados a estas incorporações ainda estão sendo solucionados para que os produtos possam ser adquiridos pelo MS e distribuídos aos pacientes. Estes exemplos demonstram o quão complexo e burocrático é o processo de incorporação de novas tecnologias".
A ABRAPHEM aponta que a principal barreira identificada não é primordialmente financeira. Battazza esclarece: "A principal barreira, em nossa perspectiva, não parece ser a financeira, uma vez que produtos incorporados a valores menores que o utilizado atualmente nunca foram distribuídos, em função de um equívoco regulatório no processo de incorporação. É importante ressaltar que parece haver uma preocupação do governo federal em relação à sustentabilidade do programa, de modo que não se disponibiliza mais de um produto ou terapia para o mesmo público, temendo impacto na produção nacional. Mas nossa expectativa é que os pacientes tenham opções de tratamento enquanto nossa produção nacional possa atender não somente ao mercado brasileiro como toda América Latina", conclui.
Panorama político
Segundo a ABRAPHEM, atualmente, não existe uma política nacional de atenção integral às pessoas com hemofilia e outras coagulopatias hereditárias tramitando formalmente no Congresso Nacional. A ABRAPHEM tem atuado ativamente para pautar essa demanda junto aos poderes Legislativo e Executivo, defendendo a necessidade urgente de um marco legal ou portaria que estabeleça diretrizes claras para o cuidado integral, o acesso a novas tecnologias e o fortalecimento da rede de urgência e emergência para esses pacientes.
As propostas legislativas existentes, segundo a associação, ainda não refletem amplamente as necessidades reais dos pacientes, muitas vezes pela ausência de uma escuta efetiva das organizações que os representam.
Sobre os desafios em garantir que as necessidades dos pacientes sejam ouvidas, Battazza enfatiza: "Por isso, a ABRAPHEM tem se empenhado em garantir que a participação social seja respeitada e fortalecida, levando aos parlamentares informações qualificadas, dados sobre os desafios cotidianos dos pacientes e evidências sobre a urgência de políticas públicas mais inclusivas e eficazes. Essa articulação visa preencher o vácuo existente entre o que está sendo proposto e o que realmente é necessário para garantir dignidade e qualidade de vida a quem convive com coagulopatias hereditárias. A ABRAPHEM acredita que políticas construídas com a escuta ativa dos pacientes são mais sustentáveis, efetivas e capazes de gerar impacto positivo a longo prazo".
No âmbito do Executivo, apesar de iniciativas pontuais como a incorporação do emicizumabe para pacientes com inibidores, o movimento em direção à modernização do sistema de saúde para doenças raras e à ampliação da equidade no acesso às novas terapias ainda é considerado tímido. Para a associação, a conversão de propostas em ações concretas é dificultada principalmente pela falta de coordenação intersetorial e pela ausência de uma agenda política com foco na equidade do acesso à saúde.
Battazza detalha os entraves: "O principal obstáculo é a falta de articulação entre os poderes e a ausência de uma agenda política comprometida com a equidade no acesso à saúde. Muitas propostas não avançam devido à burocracia, falta de orçamento, ou por não haver clareza sobre os benefícios econômicos e sociais de investir em tecnologias que, embora mais inovadoras, geram maior adesão e redução de complicações. A ausência de dados nacionais atualizados também dificulta decisões técnicas bem fundamentadas".
Recomendações de ações prioritárias para o Poder Público
Para a ABRAPHEM, a principal lacuna a ser preenchida imediatamente é a ausência de uma Portaria de Atenção e Cuidado Integral às Pessoas com hemofilia e outras coagulopatias hereditárias. Essa portaria deveria garantir aos pacientes acesso a uma linha de cuidado integral, com a organização de todo o fluxo assistencial — do diagnóstico ao tratamento especializado — e a estruturação de uma rede articulada de atendimento, incluindo os serviços de urgência e emergência.
A associação também percebe um distanciamento entre as proposições legislativas atuais e a realidade dos pacientes. Para aumentar a eficácia dessas propostas, sugere-se a criação de espaços permanentes de diálogo com pacientes e associações, maior transparência nos processos técnicos e o estabelecimento de metas com indicadores de monitoramento.
A participação cidadã é considerada crucial. Conforme Battazza: "A participação cidadã e a atuação das associações como a ABRAPHEM são fundamentais para levar a voz dos pacientes até os espaços de decisão. As associações atuam como pontes entre o cidadão e o poder público, promovem a educação em saúde, produzem dados relevantes e pressionam por avanços concretos. O fortalecimento dessa atuação com apoio institucional e financiamento adequado pode acelerar consideravelmente a implementação de políticas inclusivas e mais ajustadas à realidade da população".
Ministério da Saúde aponta avanços
Em resposta aos questionamentos aqui apresentados pela ABRAPHEM, o Ministério da Saúde, por meio de sua Assessoria de Comunicação, destacou importantes avanços na atenção às pessoas com hemofilia no Brasil. Segundo a pasta:
"O Ministério da Saúde tem avançado no cuidado às pessoas com hemofilia. Um dos principais marcos foi a ampliação do acesso ao emicizumabe para pacientes com Hemofilia A, com a publicação do protocolo de uso do medicamento e a consequente revisão do Protocolo de Imunotolerância.
Além disso, estão sendo investidos cerca de R$ 800 milhões, por meio do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) do Novo PAC, na retomada e conclusão da fábrica de hemoderivados da Hemobrás, em Goiana (PE), com o objetivo de garantir autossuficiência na produção nacional e o abastecimento regular desses medicamentos no SUS.
Neste ano, o orçamento do Ministério da Saúde destinado ao tratamento de coagulopatias hereditárias é de aproximadamente R$ 1,8 bilhão, com foco na aquisição de medicamentos pró-coagulantes e na oferta de profilaxias primária, secundária e terciária, consideradas a melhor forma de prevenção de sangramentos e complicações articulares.
A avaliação de novas tecnologias, como no caso do emicizumabe, é realizada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), com base em evidências científicas, custo-efetividade e impacto orçamentário. As decisões são tomadas após análises técnicas e consultas públicas. Todas as informações estão disponíveis em: https://www.gov.br/conitec/pt-br"
A pasta reforçou ainda o compromisso com a transparência e a participação social no processo de formulação de políticas públicas. Em resposta formal ao pleito da ABRAPHEM, o gabinete do ministro acionou a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (SECTICS) para dar seguimento às demandas apresentadas: “Conforme solicitação de atendimento pela SECTICS, pelo Gabinete do Ministro, e com a finalidade de dar continuidade ao processo de despacho, solicitamos melhor detalhamento da pauta a ser tratada (...)".
Essa rápida sinalização é vista de forma positiva por organizações de pacientes, pois demonstra abertura institucional ao diálogo e reforça a importância da escuta ativa dos pacientes na construção de políticas públicas mais efetivas. A ABRAPHEM afirmou que agradece antecipadamente ao ministério pela disposição em dialogar e valoriza seu compromisso com a causa da hemofilia, baseados no fortalecimento do SUS e na qualificação do cuidado oferecido a esses pacientes.
Conclusão
O Ministério da Saúde tem avançado no cuidado às pessoas com hemofilia, com destaque para retomada da Hemobrás e a destinação de R$ 1,8 bilhão para o tratamento de coagulopatias hereditárias em 2025. Por outro lado, persiste uma lacuna central: a ausência de uma política nacional de atenção integral às pessoas com hemofilia e outras coagulopatias hereditárias.
A criação de uma portaria que estabeleça uma linha de cuidado estruturada — com rede de urgência, acesso a exames, tratamentos ortopédicos e incorporação ágil de novas tecnologias — é urgente e indispensável.
O cenário atual aponta, portanto, para uma janela de oportunidade: alinhar os avanços técnicos e financeiros anunciados pelo ministério com a institucionalização de uma política pública robusta, construída com a participação efetiva dos pacientes. É a partir desse diálogo contínuo, transparente e comprometido que será possível transformar os avanços tecnológicos em direito efetivo, melhor qualidade de vida e dignidade para as pessoas com hemofilia no Brasil.
[1] “A hemofilia é uma doença genética que afeta a coagulação do sangue. Trata-se de uma desordem congênita* na maior parte das vezes, pois pessoas com hemofilia já nascem com a alteração que causa a doença. Em 70% dos casos, a mutação genética causadora da hemofilia já está presente na família e é transmitida pelas mães portadoras aos filhos. Nos outros 30%, a doença surge numa família sem histórico de hemofilia, sendo causada por uma mutação genética nova.” Fonte: Extraído de ABRPHEM (s.d.)
Extraído de: Hemofilia no Brasil: inovação bate à porta, mas e a política de acesso? JOTA Jornalismo, coluna - O Estado da Saúde. 2025. Vox e Gov: Blog | VOX & GOV
Comments